face book Sebastião Salgado |
Certa vez, folheando
os anais dos monges Zen da dinastia T'ang, ao ler o provérbio "Ajudar
burros a atravessar, ajudar cavalos a atravessar", fiquei muito surpresa
pela semelhança do provérbio com meu trabalho. Devo ser como uma ponte,
possibilitando a todos atravessar. No grupo que dirijo, existem pessoas em
diferentes estágios de prática e, mesmo monges, são pessoas comuns, com momentos
de delusão. Estas palavras surgiram quando ainda tinha muitas dificuldades na
função, e elas passaram a ser um preceito para mim.
Anos mais tarde,
quando soube que o Imperador Showa escolhera a palavra "ponte" para o
tema de poesias de Ano Novo, na festa do Palácio Imperial, lembrei-me do
provérbio. Não fui convidada para a festa, mas escrevi um poema sobre o tema,
incorporando o provérbio.
Ajudar burros a
atravessar
Ajudar cavalos a atravessar:
Gostaria de ser esta ponte,
Entretanto, estou sendo ajudada a atravessar.
Durante a dinastia
T'ang, na China, o grande mestre Zen Joshu Jushiro Zenji era abade do templo
Kannon-in. Para chegar ao seu templo era necessário cruzar uma ponte, que foi
chamada de Ponte de Joshu. Certa vez um monge noviço perguntou: "A Ponte
Joshu, o que é?" Ele não estava mencionando a ponte para se chegar ao
templo, mas sobre a prática budista de Joshu. Joshu respondeu: "Passa
burro, passa cavalo."
Há pessoas das quais
gostamos e pessoas das quais não gostamos, amigos e inimigos.
Pela ponte passam
pessoas boas como Budas, como também ladrões, assassinos, gente perversa e
louca. A todos permite atravessar, sem pedir nada em troca, sem selecionar. Há
quem reclame "que ponte ruim, que ponte mal feita, difícil de
passar", vão reclamando, batendo os pés, dando chutes, e pode haver até
aqueles que urinem na ponte. Poucos atravessam com gratidão dizendo
"Obrigada" ou "Graças a você pude atravessar". Seja qual
for a maneira que atravessem, a todos a ponte permite passar sem fazer
discriminação. Joshu em sua prática de grande bodisatva‚ o símbolo dessa ponte,
a imagem dessa ponte.
E eu? Cavalo
atravessa... Burro não... Pessoa que gosto sim, pessoa que não gosto não. Fico
escolhendo, selecionando de acordo com minhas conveniências. Quero que me
elogiem "Que ponte bonita!", "Obrigada", "Graças a
você". Fico mal humorada e não quero deixar atravessar aqueles que me
xingam ou urinam na ponte.
No meu trabalho
encontro sempre monjas, noviças, praticantes leigos e tenho de lembrar-me
sempre do provérbio "Ajudar burros a atravessar/ Ajudar cavalos a
atravessar", como se estivesse inúmeras vezes invocando o nome de Buda.
Certo dia ocorreu-me que ser uma ponte não era suficiente... Mesmo que poucas
pessoas utilizem o Ponte do Budismo, preciso fazer com que as pessoas deludidas
percebam a Outra Margem, e que é necessário atravessar esta ponte.
Talvez sejam muitos
os que não saibam que há uma Outra Margem. É preciso despertar neles o desejo
de alcançá-la: se querem fama, dar-lhes fama; se querem pão, dar-lhes pão; se
querem dinheiro, dar-lhes dinheiro; se querem relacionamento, dar-lhes
relacionamento, até perceberem que este é um universo maravilhoso. Para isso é
preciso ter o coração de avós bondosos, ser capaz de despir o hábito monástico,
sujar as mãos com excrementos, estar entre todos, chorar, ficar deludido, rir
juntos, até fazê-los perceber o Verdadeiro Caminho e puxá-los para cá.
Esse é o meu voto
simbolizado pelas trinta e três faces e cem corpos de Kanon. Está escrito no
Sutra de Kanon: "Nas terras do universo não há local onde não se
manifeste." Sempre e em toda parte, a atividade de Kannon se revela.
Abrindo o olho do coração-mente, vejo que a pessoa da qual penso não gostar
existe para que eu perceba meu próprio ego - é Kanon se revelando. Doente,
fracassada ou separada de quem amo devo abandonar minhas auto-indulgências e
perceber que a verdade da vida é atividade de Buda.
Vendo
tudo pela perspectiva de Buda fiquei envergonhada da minha própria arrogância e
pude perceber que ao invés de ser uma ponte, estou sendo ajudada a atravessar.
Do livro "Utsukushi Hitoni, da Rev. Shundo Aoyama Roshi, Abadessa
do Mosteiro Aichi Senmon Nisodo (Nagoya - Japão)
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