sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Correndo no lugar

foto: João Antônio

 
Falo com muitas pessoas e fico sempre triste ao constatar que não vemos o que são nossa vida e nossa prática. Ficamos confusas a respeito dos elementos básicos da prática e desviamo-nos por vias secundárias, seduzidas por toda espécie de noções incorretas a respeito. Sofremos na mesma medida em que ficamos confusas ou nos deixamos levar por atalhos.

A prática pode ser enunciada em termos muitos simples. Trata-se de sair de uma vida em que causo mágoas a mim e aos outros, para levar uma vida em que não magoo ninguém. Parece muito simples, exceto quando, em lugar da prática real, inserimos alguma ideia de que deveríamos ser diferentes ou melhores do que somos, ou que nossas vidas deveriam ser diferentes do que são. Quando colocamos ideias a respeito do deveria acontecer (noções como "Não deveria ficar com raiva, confuso, indisposto") no lugar do que nossa vida é verdadeiramente, perdemos a base e nossa prática fica estéril.

Vamos supor que nos interessa saber como se sente um corredor de maratona: ao corremos dois quarteirões, três ou sete quilômetros, iremos saber um pouco do que seja, correr tais distâncias, mas ainda não saberemos nada sobre o que é correr uma maratona. Podemos ditar regras a respeito; podemos descrever tabelas a respeito da fisiologia dos maratonistas; podemos coletar inúmeras informações sobre essa espécie de corrida; porém isso não significa que saibamos o que é. Só podemos saber, quando formos aquele que corre. Só conhecemos nossa vida, quando a vivenciamos de modo direto, em vez de sonhar com o que poderia acontecer se fizéssemos isso ou aquilo. E a isso que chamo correr no lugar, estar presente do jeito que eu sou, exatamente aqui e agora.

O primeiro estágio da prática é conscientizar-se de que não estamos correndo no lugar, que estamos sempre pensando em como nossa vida deveria ser (ou como era antes). O que há em nossa vida neste preciso momento que desejamos evitar? Tudo que for repetitivo, monótono, doloroso ou infeliz; não queremos correr no lugar com isso. Não mesmo! O primeiro estágio da prática é darmo-nos conta de que raramente estamos presentes, de que não estamos vivenciando a vida, de que estamos pensando sobre ela, conceituando-a, elaborando opiniões a seu respeito. Assusta correr no lugar. Um componente primordial da prática é perceber até onde esse medo e essa pouca vontade nos dominam.

Se praticarmos com paciência e persistência, entraremos no segundo estágio. Começamos aos poucos a tomar consciência das barreiras de ego existentes em nossa vida: os pensamentos, as emoções, as evasivas, as manipulações, a todas essas facetas podem ser agora observadas e objetivadas com mais facilidade. Essa objetivação é dolorosa e reveladora, mas se prosseguirmos, as nuvens que obscurecem o panorama ficarão mais tênues.

E qual é o terceiro e crucial estágio curativo? É a experiência direta de todo e qualquer panorama que nos apresente a vida, num dado instante, enquanto corremos no lugar. Tão simples assim? Sim. Fácil? Não.

Lembro-me de uma manhã de sábado em que adiamos em vinte minutos o horário marcado para a prática, a fim de que alguns participantes pudessem andar uns poucos quarteirões até um trecho em que se pudesse gozar a grande oportunidade de ver os atletas da maratona de San Diego passando. As 9:05 h, eles apareceram. Fiquei admirada com a qualidade fluída dos movimentos do líder, embora estivesse nos últimos quilômetros, ele simplesmente deslizava. Não era difícil apreciar sua técnica de corrida; e quanto a nós: onde é que temos de correr no lugar? Temos de praticar conosco tal como estamos, neste exato momento. E uma inspiração assistir a corrida de um atleta da melhor qualidade, mas não é nada útil pensar que deveríamos ser daquele jeito. Temos de correr onde estamos, temos de aprender aqui e agora, partindo do ponto em que estamos, aqui e agora.

Jamais crescemos se sonhamos com um estado futuro maravilhoso ou lembrando feitos passados. Crescemos sendo o que somos e estando onde estamos, vivenciando nossa vida tal como ela é, exatamente agora. Precisamos experimentar nossa raiva, nosso pesar, nossos fracassos, nossa apreensão, e eles podem ser nossos professores, quando não nos afastamos deles. Quando fugimos do que nos é dado, não podemos aprender tampouco crescer. Isso não é nada difícil de entender, embora seja difícil de executar. Os que persistem, contudo, serão os que crescerão em seu entendimento e em sua compaixão. Por quanto tempo é necessária essa prática? Para sempre.
 Texto de Charlotte Joko Beck, extraído do livro"Sempre Zen"

Nenhum comentário:

Postar um comentário

AVISO

Em observância à recomendação do Decreto Distrital, as atividades do Zen Brasília serão temporariamente suspensas, inclusive a Jornada de Z...