Mais uma vez, não ignore a impermanência. O que quer que pareça ser
prioritário em sua vida é, na realidade, bastante temporário. Vem e vai. Nada é
confiável.
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Foto: João Antônio Esteves - série Meu Jardim |
Nascemos sós e nus. Conforme a nossa vida se desenrola, passamos por
todas as situações possíveis: necessitar, possuir, perder, sofrer, chorar,
tentar… mas depois morremos, e morremos sós. Não fará a menor diferença se
fomos ricos ou pobres, conhecidos ou desconhecidos. A morte é o grande
nivelador. Em um cemitério, todos os corpos são semelhantes.
O nosso relacionamento com os outros é como o encontro casual de dois
estranhos em um estacionamento. Olham um para o outro, sorriem e isso é tudo o
que acontece entre eles. Vão embora e nunca mais se vêem. Assim é a vida –
apenas um momento, um encontro, uma passagem, e depois acaba.
Se você compreender isso, não há tempo para brigas. Não há tempo para
discussões. Não há tempo para mágoas mútuas. Quer pense nisso em termos de
humanidade, nações, comunidades ou indivíduos, não sobre tempo para mais nada a
não ser apreciar verdadeiramente a breve interação que temos uns com os outros.
Nossas prioridades mundanas podem ser irônicas. Colocamos em primeiro
lugar aquilo que julgamos ser o que mais desejamos; depois descobrimos que o
nosso desejar é insaciável. Pagar a casa, escrever um livro, fazer o negócio
ser bem-sucedido, preparar a aposentadoria, fazer longas viagens – coisas que
estão temporariamente no topo de nossa lista de prioridades, consomem nosso
tempo e energia completamente e, então, no fim da vida, olhamos para trás e nos
perguntamos o que todas essas coisas significavam.
É como alguém que viaja em um país estrangeiro e paga a sua viagem na
moeda daquele país estrangeiro e paga a sua viagem na moeda daquele país.
Quando chega à fronteira, surpreende-se ao tomar conhecimento que a moeda do
país não pode ser trocada ou levada. Da mesma forma, nossas posses e aquisições
mundanas não podem ser levadas através do portal da morte. Se confiarmos nelas,
nos sentiremos, repentinamente, empobrecidos e roubados. A única moeda que tem
qualquer valor quando viajamos pelo limiar da morte é a nossa realização
espiritual.
Em um sentido mundano, é melhor nos sentirmos satisfeito e apreciarmos
aquilo que já temos. O tempo é muito precioso. Não espere até estar morrendo
para compreender a sua natureza espiritual. Se fizer isso agora, vai descobrir
recursos de bondade e compaixão que não sabia possuir. É a partir dessa mente de
compaixão e sabedoria intrínseca que você pode beneficiar os outros.
O progresso espiritual começa quando resolvemos, seja cuidadoso. Se você
colocar-se no lugar do outro, vai perceber o quanto é destrutivo ferir ou matar
qualquer ser, ainda que seja um inseto. Todos os seres querem viver. Se você
cuidar dos outros com essa perspectiva, fechará as portas para o seu próprio
sofrimento.
A mente é com um microscópio. Amplia tudo. Se você critica-se o tempo
todo – “sou tão pobre, não sou suficientemente alto, meu nariz é grande demais”
– se concentra a atenção em todas as suas inadequações e misérias, elas só
piorarão até que, em desespero, você fique prestes a desistir de tudo.
Em vez de dizer: “sinto-me detestável. O que devo fazer?”, pense no
sofrimento dos outros e gere compaixão. É muito importante, realmente, ver o
sofrimento, prestar atenção no caixa do banco que está atormentando, no velho
pálido e cansado que arrasta os pés pela rua, na criança que chora infeliz.
Veja a profundidade do sofrimento e a partir daí dimensione o seu próprio
sofrimento. Os outros estão doentes, estão imersos na guerra e na fome, estão
morrendo.
Compaixão é o desejo fervoroso de que todos os seres, sem exceção,
encontrem a liberação do sofrimento, desde o seu pior inimigo até o seu melhor
amigo. Para desenvolver uma compaixão genuína que inclua todos, primeiro
exercita a compaixão com aqueles que lhe são próximos; depois estenda-a aos
desconhecidos e por fim a todos os seres por todo o espaço.
Depois direcione o seu desejo para a felicidade deles. Como a felicidade
vem apenas da virtude, deseje que qualquer felicidade que os outros possam ter
alcançado, em função de suas virtudes passadas, possa nunca diminuir ou ser
perdida, e que possa aumentar sempre, até que alcancem a felicidade infinita e
imutável. Esse desejo pela felicidade dos outros é o significado verdadeiro de
amor. Regozijar-se com qualquer extensão de felicidade que os outros possam
ter, traz uma alegria ilimitada à nossa própria existência.
Reconheça sempre que a qualidade onírica da vida e reduza o apego
e a aversão. Pratique o bom coração em relação a todos os seres. Seja amoroso e
compassivo, não importa o que os outros façam. O que fazem não importará muito
quando visto por você como um sonho. Esse é o ponto essencial. Essa é a
verdadeira espiritualidade.
Se você usar manto, raspar a cabeça, rezar de joelhos todos os dias, e
ainda assim se tornar mais raivoso, orgulhoso, rígido e difícil de lidar, não
estará praticando a espiritualidade. Você precisa praticar a essência, que é a
compaixão e o amor altruísta, e a partir daí tentar ajudar os outros da melhor
maneira que puder. Use todos os seus recursos de corpo, fala e mente. Esse é o
método. Seja você cristão, hindu, judeu ou budista, a compaixão e o amor são os
mesmos. A vitória sobre as falhas e delusões leva à vitória sobre a morte.
Meu desejo para cada um de vocês é que alcancem as qualidades de compaixão e
sabedoria e o supremo e imortal estado de iluminação.
Texto do livro “Vida e morte no budismo
tibetano”, por Chagdud Tulku Rinpoche.