foto: Laila Menezes |
Quando Xaquiamuni Buda girou pela primeira vez a Roda do Darma, Ajnatakaundinya despertou. Em seu último discurso do Darma, Subhadra se iluminou. Todos os que deveriam ser despertos assim o foram.
Entre duas árvores-sala, Xaquiamuni Buda estava quase entrando em Parinirvana. Era o meio de uma noite calma, silenciosa, sem nenhum ruído.
Para o bem de todos os seus discípulos, Xaquiamuni Buda fez uma breve explicação da essência do Darma:
“Ó monges! Depois de minha morte, respeitem e compartilhem os Preceitos. Manter os Preceitos é como encontrar uma luz na escuridão; é como uma pessoa pobre que encontra um grande tesouro. Saibam que os Preceitos são, para vocês, o mestre. Manter os Preceitos é Me manter sempre vivo neste mundo. As pessoas que mantêm os Preceitos não devem se dedicar ao comércio, nem devem possuir campos e moradias; não devem governar sobre outras pessoas, nem manter servos ou animais. Devem evitar possuir plantações e acumular bens, da mesma forma que evitariam uma fogueira. Não devem cortar grama nem árvores, arar o solo ou cavar a terra, misturar remédios, ler a sorte, observar a posição das estrelas, predizer as fases da Lua, calcular calendários e dias auspiciosos.
Controlem seu corpo, comam nas horas certas, em pureza se conduzam. Não se envolvam nos afazeres mundanos, nem ajam como mensageiros. Não façam mágicas, não misturem poções e não se tornem íntimos com pessoas eminentes. Com a mente clara e correta atenção, vocês devem procurar o despertar. Vocês não devem esconder seus erros, não devem expressar pontos de vista errôneos, nem liderar pessoas erroneamente. Ao receber as quatro espécies de ofertas, saibam a quantia correta e fiquem satisfeitos. Não acumulem ofertas.
Agora vou falar brevemente em como proteger os Preceitos. Os Preceitos são a base da verdadeira libertação, por isso são chamados de Pratimoksa(1) – o que leva à libertação. A confiança nos Preceitos faz surgir todos os dianas(2) e a sabedoria que extingue o sofrimento. Por essa razão, monges, vocês devem manter os Preceitos e não os devem infringir. Se vocês mantiverem os Preceitos, obterão o Bem. Se não os mantiverem, nenhum mérito surgirá. Assim, saibam que os Preceitos são o local em que vive a equanimidade, que é o mérito fundamental.
Ó monges! Vocês, que mantêm os Preceitos, devem controlar os cinco sentidos. Não deixem os sentidos desprotegidos, permitindo que os cinco desejos penetrem e controlem vocês. É como o vaqueiro que brande sua vara para evitar que o gado invada a plantação de outra pessoa. Se há indulgência nos cinco sentidos, os cinco desejos ficarão à solta e vocês serão incapazes de controlá-los. Novamente repito: é como um cavalo bravo que não pode ser controlado pelo chicote e cai numa vala, levando seu cavaleiro com ele. Embora o sofrimento de ser ferido por um ladrão dure apenas uma vida, o mal causado pelos cinco sentidos se estende através de muitas vidas, criando grande dor. Não negligenciem a atenção. É por essa razão que a pessoa sábia controla seus sentidos e não os segue; os mantém guardados, não permitindo que vagueiem ao léu. Os sábios, quando libertam os cinco sentidos, logo os aquietam. A mestra dos cinco sentidos é a mente. Por essa razão, vocês devem controlar sua mente. A mente deve ser mais temida que cobras venenosas, bestas selvagens ou assaltantes vingadores. Grandes incêndios e destrutivas enchentes não podem ser comparados a ela. É como uma pessoa que, correndo celeremente com uma jarra de mel nas mãos, olhasse apenas para o mel e não visse um grande buraco. Repito: é como um elefante enlouquecido sem uma corrente ou um macaco pulando nas árvores – ambos são muito difíceis de controlar. Dominem logo a mente e não a deixem desembestar. Se cederem, perderão a boa sorte de terem nascido humanos. Se mantiverem a mente focalizada, não haverá algo que não possam obter. Por essa razão, monges, vocês devem se esforçar com muita diligência para manter a mente sob controle.
Ó monges! Quando receberem comida e bebida, vocês as devem considerar como remédio. Não peguem mais daquilo de que gostam, nem menos daquilo de que desgostam. Apenas aceitem o suficiente para manter sua vida e controlar a fome e a sede. Façam como a abelha, que apanha apenas a doçura das flores sem manchar sua cor ou tirar sua fragrância. Aceitem apenas o suficiente das ofertas para evitar tristezas. Não peçam muito para não destruir as boas intenções. Isso se compara à pessoa sábia que conhece a força de seu touro e não o sobrecarrega.
Ó monges! Dia e noite pratiquem com determinação o bom ensinamento. Não percam tempo. Não negligenciem seus esforços: nem à noite, nem mesmo ao amanhecer. No meio da noite, recitem os Sutras. Assim vocês devem ordenar sua vida. Não deixem que a vida passe à toa, apenas dormindo, sem obter a realização. Vocês devem se lembrar de que o mundo todo está sendo consumido pelo fogo da impermanência. Rapidamente procurem despertar e não dormir. As paixões estão sempre prontas para matar uma pessoa, mais do que um inimigo mortal. Como vocês podem ficar dormindo e baixar a guarda? As paixões são como uma cobra venenosa dormindo em sua mente. Não são diferentes de uma cobra negra dormindo em seu quarto. Espante-a com a ponta aguda dos Preceitos. Vocês só poderão dormir tranquilos depois que a cobra sair. Se dormirem enquanto a cobra ainda estiver lá, vocês estarão agindo sem consciência. Entre as coisas refinadas, a tecedura da consciência é a melhor de todas. A consciência é como uma agulha de ferro com a qual se pinçam os enganos. Assim sendo, monges, sempre sigam sua consciência e não a ignorem nem por um só momento. Esquecendo-se da consciência, perdem-se todos os méritos. Aqueles que conhecem o pudor sabem do bom ensinamento. Aqueles que não conhecem o pudor não são diferentes de bestas selvagens.
Ó monges! Se alguém vier desmembrá-los, articulação por articulação, vocês devem controlar a mente e não permitir que a raiva surja. Da mesma forma, vocês devem proteger sua boca; caso contrário, palavras más sairão dela. Se vocês permitirem pensamentos de raiva, estarão obstruindo seu próprio caminho e perdendo o benefício de seus méritos. A paciência é uma virtude superior à manutenção dos Preceitos e das práticas ascéticas. As pessoas que praticam a paciência podem verdadeiramente ser chamadas de poderosas, de seres superiores. As pessoas que com paciência e alegria podem aceitar o veneno do abuso como se estivessem bebendo néctar celestial – essas podem ser chamadas de pessoas de sabedoria que adentraram o Caminho. Por quê? Porque os efeitos maléficos da raiva quebram todos os bons ensinamentos e destroem o bom nome, de forma que, tanto no presente como no futuro, as pessoas não sentirão prazer ao vê-los. Vocês devem saber que a raiva é mais poderosa que o fogo ardente. Sempre se protejam e não permitam que a raiva penetre em vocês. Nenhum ladrão rouba mais méritos do que a raiva. Mesmo nos leigos, cheios de apegos e desejos, sem praticar o Caminho, sem conhecer o Darma para se controlar, mesmo neles a raiva não é desculpável. Aqueles que deixaram o lar e praticam o Caminho do não apego nunca devem permitir que a raiva surja, assim como o trovão e o raio não ocorrem num céu suave e claro.
Ó monges! Lembrem-se de sua cabeça raspada. Vocês já abandonaram as ornamentações, usam roupas simples e praticam a mendicância. Se o orgulho surgir, vocês o devem extinguir rapidamente. Cultivar o orgulho não é apropriado para quem vive uma vida comum, muito menos para quem deixou seu lar, adentrou o Caminho, controla seu corpo e pratica o esmolar para obter a libertação.
Ó monges! A mente desonesta é incompatível com o Caminho. Por essa razão, vocês devem cultivar a honestidade. Vocês devem saber que a desonestidade só produz enganos. Quem adentra o Caminho não age assim. É por isso, monges, que vocês devem ter a mente correta e agir baseados na honestidade.
Ó monges! Vocês devem saber que uma pessoa de muitos desejos, procurando grandiosidade apenas para si mesma, sofre muito. A pessoa de poucos desejos, que nem procura nem deseja, não tem esse pesar. Essa é a simples razão pela qual vocês devem ter o mínimo de desejos. Mais do que isso: devem ter poucos desejos porque essa é a fonte de todos os bons méritos. Uma pessoa de poucos desejos não manipula a mente dos outros por meio da desonestidade, nem é levada pelos seis órgãos dos sentidos. A mente de quem tem poucos desejos é tranquila e sem preocupações. O que tiver é suficiente, nunca há insuficiência. Para aqueles que têm poucos desejos, o Nirvana existe. Esta é a prática de poucos desejos.
Ó monges! Se vocês querem se libertar de todo o sofrimento, vocês devem conhecer o contentamento. O estado de contentamento é a condição de prosperidade e bem-estar. A pessoa contente fica feliz mesmo quando tem apenas a terra para se deitar sobre ela. A pessoa que não se contenta está insatisfeita mesmo em palácios celestiais. Quem não conhece o contentamento é pobre, apesar de todas as riquezas que possa ter. Alguém que é contente é rico, não importando quão pobre possa ser. Quem não conhece o contentamento é sempre arrastado por desejos e deve ser apiedado por quem é contente. Esta é a prática do contentamento.
Ó monges! Se vocês procuram pela bênção da tranquilidade irremovível, devem abandonar o tumulto da sociedade e viver a sós em um retiro quieto. Aqueles que vivem em solidão são honrados por Indra e por seres celestiais. Por isso, vocês devem deixar tanto a sua como as outras vilas ou cidades e viver a sós em locais remotos, com a intenção de extinguir a origem do sofrimento. Os ávidos por companhia sofrem dificuldades por excesso de companhia, assim como a árvore corre o risco de murchar se muitos pássaros viverem nela. Se estiverem apegados ao mundo, irão afundar no sofrimento comum, assim como um velho elefante se afoga na areia movediça e dali não consegue sair. Tal é a prática do isolamento.
Ó monges! Se vocês diligentemente mantiverem o esforço correto, nada será difícil. Por isso, vocês devem manter o esforço correto diligentemente, assim como o constante gotejar da água fura uma rocha. Se a mente do praticante for inclinada à indolência, será como esfregar a madeira para iniciar o fogo e descansar antes que ela fique quente. Mesmo que essa pessoa queira o fogo, a faísca não acontece. Tal é a prática do esforço correto.
Ó monges! Não percam a atenção correta ao procurar por um mestre ou por um amigo. Se vocês perderem a atenção, as paixões poderão entrar. Por isso, monges, sempre mantenham a plena atenção. Se perderem a atenção, perderão todo o mérito. Se o poder da atenção for forte, vocês não poderão ser feridos pelos desejos, assim como não teriam o que temer se entrassem numa batalha usando uma armadura. Esta é a prática de não perder a atenção.
Ó monges! Se unificarem sua mente, sua mente estará concentrada. Quando sua mente estiver concentrada, vocês poderão compreender as marcas do surgir e do extinguir de todas as coisas no mundo. Por isso, monges, vocês devem praticar a concentração sempre e diligentemente. Se obtiverem a concentração, a mente não ficará dispersa. Assim como as barragens são mantidas em bom estado para conservar a água, o praticante, para o bem da água da sabedoria, deve concentrar-se em meditação e não permitir que ela vaze. Tal é a prática da concentração.
Ó monges! Se vocês tiverem sabedoria, não terão ganância. Observem-se e não permitam que a sabedoria se perca. Por meio do Darma vocês poderão se libertar. Se assim não o fizerem, não serão considerados seguidores do Caminho. Nem mesmo leigos serão. Em verdade, a sabedoria é um navio forte que os leva através do oceano da velhice, doença e morte. Repito: a sabedoria é uma grande lâmpada que ilumina a escuridão da ignorância, é um remédio maravilhoso para todas as doenças, é um machado afiado que corta a árvore das paixões. Por isso, monges, por meio do ouvir, do pensar e do praticar, vocês devem aumentar sempre a sabedoria. Se possuírem o brilho da sabedoria, poderão ver claramente, com seus próprios olhos. Tal é a sabedoria.
Ó monges! Se vocês se engajarem de forma leviana em conversas inúteis, sua mente ficará confusa. Mesmo que tenham deixado sua casa, não poderão obter a libertação. Por isso, monges, vocês devem imediatamente abandonar pensamentos confusos e conversas desnecessárias. Se quiserem obter a bênção do Nirvana, vocês devem apenas extinguir o mal de falar à toa. Tal é a prática de evitar a fala fútil. Ó monges! De todas as atividades meritórias, vocês devem, de todo o coração, concentrar-se em afastar qualquer forma de indulgência pessoal, assim como vocês evitariam um ladrão. O benéfico Ensinamento de Grande Compaixão do Mais Honrado agora se completou.
Ó monges! Vocês devem se esforçar diligentemente na prática do Darma. Tanto se viverem nas montanhas como à beira d’água, sob uma árvore, num local remoto ou num aposento sossegado, mantenham a plena atenção no Darma que receberam e não o esqueçam. Vocês devem sempre se empenhar na prática do Darma e do esforço correto. Se não fizerem nada e morrerem em vão, vocês só encontrarão arrependimentos futuros. Sou como um bom médico que, reconhecendo uma doença, prescreve a receita apropriada. Se o remédio é tomado ou não, já não é de responsabilidade do médico. Novamente digo: sou como um bom guia que mostra às pessoas o melhor caminho. Se elas não o seguirem, sabendo de sua existência, não é culpa do guia.
Ó monges! Se tiverem qualquer dúvida sobre as Quatro Nobres Verdades, perguntem imediatamente. Não guardem as dúvidas sem procurar resolvê-las.” Por três vezes, o Mais Honrado exortou os monges dessa forma, mas ninguém na assembleia falou, pois não havia dúvidas. Nesse momento, Aniruddha, percebendo a mente dos que estavam ali reunidos, disse a Buda:
“Honrado do Mundo! Mesmo que a Lua fique quente e o Sol torne-se frio, as Quatro Nobres Verdades ensinadas por Buda não podem mudar. A verdade do sofrimento ensinada por Buda é do verdadeiro sofrimento que não vira felicidade. Apego é a causa verdadeira, e não há outra causa. O sofrimento é destruído quando sua causa é destruída. O caminho da destruição do sofrimento é o Caminho da Verdade, e não há outro caminho.
Honrado do Mundo! Todos estes monges têm certeza e não têm dúvidas em relação às Quatro Nobres Verdades. Se nesta assembleia houver alguém que ainda não completou sua compreensão, ao ver a passagem de Buda se lamentará. Aqueles que apenas agora penetraram o Darma obterão o despertar ao ouvir as palavras de Buda, assim como na escuridão da noite um raio ilumina a estrada. Se houver alguém que já tenha completado sua compreensão e cruzado o mar de sofrimento, terá apenas este pensamento: quão rápida é a passagem do Mais Honrado do Mundo!” Quando Aniruddha pronunciou estas palavras, todos na assembleia claramente compreenderam o significado das Quatro Nobres Verdades. Mas o Honrado do Mundo, querendo que todos na grande assembleia se tornassem mais fortes, movido por sua infinita Compaixão, falou:
“Ó monges! Não se lamentem! Nosso estar juntos um dia acabaria, mesmo que Eu vivesse no mundo o tempo de um kalpa . Não existe encontro sem despedida. O Darma que beneficia eu como o outro se completou. Mesmo que Eu vivesse mais, não haveria nada a adicionar ao Darma. Aqueles que deveriam ser despertos, tanto nos céus como entre os seres humanos, todos foram acordados. Todos possuem as condições para obter o despertar, mesmo aqueles que não foram despertos. Se todos os Meus discípulos, de geração em geração, a partir de agora praticarem o Darma, o Corpo do Darma do Tathagata existirá para sempre e nunca será destruído. Saibam que tudo no mundo é impermanente; o que se junta inevitavelmente se separa. Não se preocupem, pois esta é a natureza da vida. Pratiquem diligentemente com esforço correto e procurem a libertação imediatamente. Destruam a escuridão da ignorância com a luz da sabedoria. Nada é seguro. Tudo nesta vida é precário.
Agora obtenho o Parinirvana. É como se libertar de uma doença maléfica. Esta coisa que descartamos e que chamamos de corpo está afogado no mar do nascimento, velhice, doença e morte. Como poderia haver alguma pessoa sábia que não se alegrasse ao se desfazer dele?
Ó monges! Vocês devem sempre, de todo o coração, procurar o Caminho da libertação. Todas as coisas no mundo, tanto as que se movem como as que não se movem, são caracterizadas por instabilidade e desaparecimento. Parem agora! Não falem! O tempo passa. Atravesso. Este é o Meu Ensinamento final.”
1 - O termo sânscrito pratimoksa pode ser traduzido como “crescendo e aumentando” e “purificando e erradicando”. Possui ainda dois outros significados: “libertação garantida” (a alguém que segue os preceitos do Bodisatva, é garantido que conseguirá partir do nível de uma pessoa comum e chegar ao nível de uma pessoa sábia) e “libertação especial” (para cada preceito que se segue, obtém-se uma libertação particular).
2 - O termo diana (do sânscrito dhyāna), equivalente ao termo japonês zen, refere-se a um estado meditativo ou a um estado absorto da mente trazido pela meditação. Há quatro estados de absorção, ou quatro dianas. No primeiro diana, ocorre a libertação de paixões, desejos e pensamentos prejudiciais, e obtém-se um interesse jovial e uma sensação de bem-estar. No segundo diana, a atividade intelectual cessa e é substituída por tranquilidade e mente focada. O interesse jovial e a sensação de bem-estar ainda estão presentes. No terceiro diana, a alegria cessa e é substituída por equanimidade. No quarto diana, todas as sensações cessam e apenas a mente plena de equanimidade permanece.
Tradução do japonês para o inglês: Kazuaki Tanashi e Jonathan Condit (San Francisco, maio de 1980). Tradução do inglês para o português: Monja Coen (São Paulo, fevereiro de 2002). Revisão de texto: Monja Coen (São Paulo, fevereiro de 2003). Revisão final: Andrea Caitano (São Paulo, fevereiro de 2011).
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